JORGE LUIS BORGES – ficcionista

Heloisa Helena Siqueira Correia

Nascido em 24 de agosto de 1899 em Buenos Aires, Jorge Luis Borges, escritor, tradutor, poeta, ensaísta e crítico argentino vivenciou as transformações do século XX até 1986, quando morreu em Genebra. O escritor, criador de mundo próprio e de uma literatura desafiante em seu tempo, sobretudo na forma de contos, ensaios e poemas, continua provocando leitores ao redor dos mundos.

O crítico literário uruguaio Emir Rodrigues Monegal explica que, a partir dos anos 1950 do século passado, com as versões de seus textos para o francês, o recebimento do Prêmio Internacional dos editores em 1961, bem como a publicação de um volume coletivo por Lُ Herne, dedicado tão somente a Borges em 1964, sua obra passa a ser respeitada em vários países do mundo. Seu reconhecimento em Argentina, portanto, virá em seguida. Somente após a leitura pelos estrangeiros o escritor passa a ser lido seriamente em seu país e reconhecido como referência obrigatória para os que leem e fazem determinado tipo de literatura (MONEGAL, 1980, p. 19). Borges realiza radicalmente o que, em outro sentido, havia declarado em “El escritor argentino y la tradición”, quando afirma que nós, os sul americanos, “[…] podemos manejar todos los temas europeos, manejarlos sin supersticiones, con una irreverencia que puede tener, y ya tiene, consecuencias afortunadas” (1994, p. 273).

Sua literatura, misto de ficção e filosofia, impressiona intelectuais como Gérard Genette, Jean Ricardou, Umberto Eco, e filósofos como Michel Foucault. Na década de 1960 inspirou a geração de escritores protagonistas do boom latino-americano, como García Márquez, Vargas Llosa e Carlos Fuentes, e sua presença é marcante também na obra de Julio Cortázar, Bioy Casares, Italo Calvino e Ricardo Piglia, entre outros.

Em um golpe de vista já é possível saber que a obra borgeana é povoada por temas, imagens e metáforas recorrentes, como os labirintos, os círculos, rios, tigres, espelhos, duelos, subúrbios, duplos, heróis, traidores, tempos, jogos, argumentos, e também as viagens, ruínas, planícies, bibliotecas e tramas. São frequentes ainda, os jogos com conceitos contrários, posições inversas, ideias opostas, que postas tensamente lado a lado, carregam a mesma ênfase: o traço temporal da simultaneidade. Desse modo, as ficções borgeanas consideram o lado do traidor e do herói, do dito e do silêncio, do escrito e do lido, como elementos simultâneos.

Como referência à tensão acima mencionada, encontramo-la em muitos textos. Entre os contos, por exemplo, Biografía de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874) (BORGES, 1994a, p. 561-3), La otra muerte (BORGES, 1994a, p. 571-5), e Tema del traidor y del héroi (BORGES, 1994a, p. 496-8), em que o traidor torna-se o seu contrário, o herói e vice-versa; La intrusa (BORGES, 1993, p. 403-6), em que o que é silenciado tem tanta força quanto o que é explicado; e Pierre Menard, autor del Quijote (BORGES, 1994a, p. 444-50), em que a leitura tem a mesma força de determinação da obra quanto a escritura. Esta ambivalência dos textos poéticos, narrativos e ensaísticos pode ser compreendida como indício de que a obra não caminha sincronicamente ao passo da razão e do princípio de identidade da lógica clássica. Não privilegia a razão ou a imaginação, coaduna as duas como responsáveis pela literatura.

As reflexões metalinguísticas que pululam em meio às histórias de seus contos, aos versos de seus poemas e em suas linhas ensaísticas (ensaios, prólogos, resenhas, epílogos), abordam várias questões acerca do fazer literário, como os conceitos de autoria, leitura, metáfora e tradução, renovando seus sentidos e valores. É notória a concepção borgeana segundo a qual o fenômeno estético depende do encontro do texto com o leitor, muito mais do que do autor. Toda autoria implica a leitura, assim como toda leitura é uma forma de autoria. Nesse sentido, as narrativas que um livro possui, e que não são tocadas pelo leitor, são folhas escritas empoeiradas, objetos de museu. Aqueles textos que são lidos e relidos, ao contrário, fazem parte da biblioteca viva, estão em transformação contínua, porque cada vez que o leitor os lê modifica-os, anexando-lhes elementos e produzindo variações de sentido.

O mito do Sul e da fronteira para sempre consagrado por Borges nas imagens dos gaúchos, dos duelos e do pampa e as refinadas construções intelectuais, apoiadas em raciocínios metafísicos e argumentos teológicos, além da vasta, vária e frequente referência a escritores canônicos e não canônicos incomodam à crítica argentina e latino-americana dos anos 40 e 50, ávida por encontrar a essência da argentinidade e a defesa dos valores nacionais.

Sobrepõe-se, naquele momento, o regionalismo que interessava para uma reduzidíssima elite política portenha, sem significados ou sentidos que emanassem do próprio “gaúcho”. Borges busca se desviar da seara própria aos escritores oficiais como Ricardo Güiraldes e Domingo Faustino Sarmiento em cujos textos abundam a descrição barroca da cor local, muito distante da realidade. A estética borgeana, diferentemente, cria um plano mítico para os personagens/arquétipos de “mí Buenos Aires” e da “pampa”, retirando-os do regionalismo e alçando-os ao plano da atemporalidade. Desse modo, se distancia da literatura oficial encomendada pelos interesses do poder. É possível ao leitor perceber, desde os primeiros textos, como Borges aproveita-se de signos fortes para o imaginário argentino como o punhal, o gaúcho oriental, o duelo e o pampa. Sua estratégia é elevar universal e hiperbolicamente os símbolos para se diferenciar dos escritores regionalistas preocupados com a identidade nacional.

No que diz respeito às ficções borgeanas que participam do neofantástico latino-americano (ALAZRAKI, 2001, p. 272), percebe-se o traço intelectual do leitor de mitologias e filosofia que se debruça sobre problemas metafísicos, como a questão do tempo, da eternidade, do infinito e do real. Nessa direção, entre os contos que concretizam tais problemas no campo da ficção, não se pode esquecer de, entre outros, “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, “El jardín de senderos que se bifurcan”, “Las Ruinas Circulares” “La biblioteca de Babel” e “Funes, el memorioso” da coletânea de contos Ficções, de 1944; e os contos “El inmortal” e “El Aleph”, “Biografía de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874)”, “La escritura del dios” e “La casa de Asterión” do livro Aleph, de 1949. Desse modo, Borges salienta o entrelaçamento entre o domínio do fantástico e o domínio do metafísico, o que já sugeriu estudos sobre a possibilidade de pensar determinado conjunto de textos do escritor como um fantástico metafísico ou como uma metafísica fantástica. Alguns deles nitidamente textos híbridos também no que diz respeito ao gênero, mesclam elementos do conto e do ensaio, da imaginação e da razão, o que os torna singularmente contos-ensaios. No conto “La biblioteca de Babel”, por exemplo, as palavras que iniciam o conto possuem tom ensaístico: “El universo (que otros llaman la Biblioteca) [..]”. O que se segue são desdobramentos dessa analogia profunda entre universo e biblioteca, reflexões, conceitos, narrativas e personagens tomam o leitor de modo que ele também passa a refletir e questionar, afinal, o que há fora de tal biblioteca? Seu aparente exterior ainda é ela mesma?

Em pelo menos duas narrativas: “El otro” e “Veinticinco de agosto, 1983”, Borges é personagem e narrador a um só tempo e em ambas as narrativas encontra-se consigo mesmo em momentos diferentes do tempo. Borgeanamente, no terceiro volume das Obras completas publicado pela Emecé Editores, Borges escreveu seu próprio verbete no que seria a “Enciclopedia Sudamericana, que se publicará en Santiago de Chile, el año 2074”. Assim, ao início irônico do verbete lê-se sobre o desconhecimento da data de sua morte:

 BORGES, JOSÉ FRANCISCO ISIDORO LUIS: autor autodidacta, nació en la ciudad de Buenos Aires, a la sazón capital de la Argentina, en 1899. La fecha de su muerte se ignora, ya que los periódicos, género literario de la época, desaparecieron durante los magnos conflictos que los historiadores locales ahora compendian.

E como parte do encerramento do verbete, as palavras que encontram o leitor são uma espécie de eco da própria literatura:

¿Sintió Borges alguna vez la discordia íntima de su suerte? Sospechamos que sí. Descreyó del libre albedrío y le complacía repetir esta sentencia de Carlyle: ‘La historia universal es un texto que estamos obligados a leer y a escribir incesantemente y en el cual también nos escriben’. (BORGES, 1994b, p. 518)

Ao leitor borgeano o universo foi generosamente dado, nele precisa perceber-se leitor e escritor de modo simultâneo, incansável e incessantemente… A saída do labirinto mantém-se desconhecida, nossa vida diária, a cotidiana leitura dos acontecimentos do mundo, o senso-comum, nossas pequenas e contínuas crônicas e nossos diálogos parecem estar, igualmente, habitando a labiríntica e eterna biblioteca.

REFERÊNCIAS

ALAZRAKI, Jaime. ¿Qué es lo neofantástico?. In: ROAS, David (Org). Teorías de lo fantástico. Madrid: Arco/Libros, p. 265-282, 2001.
BORGES, Jorge Luis. Obras completas: 1952-72. Buenos Aires: Emecé Editores, v. 2, p. 527, 1993.
BORGES, Jorge Luis. Obras completas: 1923-49. Buenos Aires: Emecé Editores, v. 1, p. 638, 1994a.
BORGES, Jorge Luis. Obras completas: 1975-85. Buenos Aires: Emecé Editores, v. 3, p. 518, 1994b.
MONEGAL, E. R. Borges: uma poética da leitura. Tradução de Irlemar Chiampi. São Paulo: Editora Perspectiva, p. 187, 1980.