JACQUES CAZOTTE – ficcionista

Maria Cristina Batalha

Jacques Cazotte (1719-1792) nasceu em Dijon, na França, e estudou em colégio jesuíta, tendo tido como companheiro de colégio Jean-François Rameau, sobrinho famoso que inspirou o escritor Denis Diderot. Por volta de 1741, se muda para Paris onde começa a publicar suas primeiras obras. Sua evolução intelectual e seu percurso espiritual são determinantes para fazer nascer uma aversão ao espírito filosófico que ele não cessa de denegrir em seus escritos. Vendo na Revolução uma obra satânica destinada a destruir a fé, a tradição e a monarquia, o autor é alvo de um processo e acaba sendo guilhotinado em 1792.

Cazotte lança-se na carreira literária escrevendo contos paródicos – La patte du chat, paródia de conto oriental (1740), Les mille et une fadaises (1742) e Ollivier, paródia do gênero trovadoresco (1763). Mesmo quando Cazotte se aventura na poesia, é também pelo viés da sátira e do humor parodístico, como se evidencia pela publicação, em 1766, do poema humorístico La nouvelle Raméide. Em todas essas incursões literárias, o sobrenatural ou a fantasia estão presentes e, em Lord impromptu, por exemplo, obra de 1767, Cazotte elabora um estudo dos costumes de sua época, na qual, mesmo fazendo apelo ao sobrenatural, este aparece, no entanto, bem “explicado”. A vocação parodística e a ironia presentes em Mille et une fadaises, na qual, se ele escreve para brincar com a forma do conto, por outro lado, também não esconde sua simpatia pelo maravilhoso e por este gênero literário. Se a obra literária que precede o Diable amoureux (1772) (O Diabo enamorado) é marcada pela paródia e a sátira, seus contos posteriores, sobretudo Le Chevalier, Simoustapha e Maugraby, se revestem de um caráter moralista e as visões do horror, das torturas e da violência aí evocadas assumem a forma de denúncia, onde Bem e Mal se reduzem à simplicidade maniqueísta, mesclado a uma perspectiva trágica. No conjunto da obra do escritor, o romance Le diable amoureux se afigura como duplamente insólito: não apenas no próprio percurso da carreira como também no quadro da produção ficcional do século XVIII (DECOTE, 1981, p. 17-8). Perseguindo a diretriz que orienta sua produção literária anterior, Cazotte decide escrever uma nova fantasia, inserindo aquilo que sabe a respeito do martinismo e da cabala. No prefácio à edição do Diable amoureux, de 1981, Georges Décote assinala a indisfarçável capacidade de Cazotte para unificar os diferentes aspectos de sua poética, deixando transparecer a hesitação e a instabilidade quanto à definição do gênero com o qual deseja trabalhar. Sem intenção de fazê-lo ao escrever o romance, a crítica é inânime em considerar Le diable amoureux como o marco de nascimento do fantástico na literatura ocidental, influenciando Schiller (O Visionário) e Hoffmann (O espírito elementar), cuja obra tornou-se legendária na França, muito mais do que na própria Alemanha. Os três epílogos sucessivos propostos por Cazotte ilustram significativamente a recusa do autor em atribuir um sentido único para sua obra – rechaçando tanto o maravilhoso, quanto o verossímil realista – e apontam para o desejo manifesto de ambiguidade que queria imprimir a seu texto. Em um século em que formas literárias diversas se cruzam, dando origem a novas combinações e a novos gêneros ou subgêneros, a maneira pela qual Cazotte recolhe e reorganiza a herança literária legada a sua época não passa desapercebida por alguns de seus contemporâneos. No jornal Mercure de France, em seguida à publicação do romance Le diable amoureux, lemos:

Uma tragédia, um romance, um conto, uma comédia têm geralmente um ar de família com alguma outra obra do mesmo gênero que as precedeu […]. Entretanto, de vez em quando, acontece que a imaginação de alguns escritores, menos suscetíveis à imitação servil, coloca em uma forma nova as obras que gosta de criar. Este parece ser o caso do autor do Diable amoureux. (MILNER apud CAZOTTE: 1979, p. 9)

Isto equivale a dizer que o crítico da época, embora reconhecendo a presença de gêneros bastante familiares do público leitor, já observa que a nova combinatória de que são objeto anuncia uma ruptura do horizonte de expectativa do leitor. Na impossibilidade de se designar e nomear a novidade radical do Diable amoureux, cria-se a lenda da iniciação de seu autor aos saberes do martinismo (fundada por Martinès de Pasqually) e da cabala, acusando-o de revelar e profanar segredos vedados aos profanos. Posteriormente, a figura de Cazotte será identificada com a de um profeta que prognostica a morte dos reis e de alguns de seus amigos, assim como a sua própria morte e a futura sorte do processo revolucionário francês.

A novidade do texto de Cazotte suscita uma dupla leitura dessa obra: como percurso da sedução de Alvare, as artimanhas de Biondetta, assim como os acontecimentos que se sucedem, podem ser apenas artifícios femininos e simples “acasos”; ou, se tomarmos a perspectiva do sobrenatural, podem designar uma intervenção de forças diabólicas, já que a figura da moça é associada à reencarnação do diabo. Essas duas interpretações se sustentam na verossimilhança que, embora de natureza diferente, não se contradizem entre si, permanecendo a dúvida ao final da leitura.

Assim, a persistência de um resíduo mágico não assimilado, deixando às ilusões da imaginação a possibilidade de que os fantasmas sejam de origem diabólica, fazem deste livro o primeiro texto que podemos classificar como “fantástico”, embora permaneça circunscrito a um contexto de século XVIII e faça figura de exceção – a não ser pelo Manuscrit trouvé à Saragosse (de Jean de Potocki) – na série literária francesa, cuja retomada do gênero só se produzirá algumas décadas mais tarde, a partir das traduções de Hoffmann, da Alemanha.

REFERÊNCIAS

CAZOTTE, Jacques. Le diable amoureux. Préface et notes de MILNER, Max. Paris: Garnier-Flammarion, 1979.
DECOTE, Georges. Prefácio a CAZOTTE. Le diable amoureux. Paris: Gallimard, 1981.
MILNER, Max. Le diable dans la littérature française: de Cazotte à Baudelaire, v. 1 e 2. Paris: José Corti, 1960.