INSÓLITO FICCIONAL

Flavio García

O vocábulo insólito, formado por derivação prefixal a partir de sólito, o qual significa, em linhas gerais, usado, habitual, costumeiro, frequente, ocorre nas línguas neolatinas tanto como adjetivo, quanto como substantivo, denotando, negativamente, além dos sentidos opostos àqueles expressos por sua construção afirmativa, extraordinário, raro, singular, incomum, estranho, que não se espera, etc. Trata-se, portanto, da forma originada pela anteposição do prefixo in-, o qual indica, primeiramente, negação, podendo, ainda, apontar para lugar ou expressar a ideia de movimento para dentro. A gênese de sólito e, por conseguinte, de insólito, encontra-se no verbo transitivo e intransitivo soer, que, no mais geral, diz ter por costume, ser frequente.

Na ampla seara dos Estudos Narrativos, o termo vem sendo bastante utilizado, ora como adjetivo, ora como substantivo, expressando os mesmos significados originários da palavra, para se referir à diversidade da ficção fantástica. Sua ocorrência tem registro na teoria e na crítica acadêmica ou jornalística que se ocupam do tema, nomeadamente quando esta se encontra escrita em ou traduzida para alguma língua neolatina. Assim, varia entre sugerir algum efeito perceptível na recepção, determinar processos de composição ou circunscrever um termo-conceito cuja delimitação flutua por diferentes correntes teóricas. Esta última circunstância refere-se, mais propriamente, ao insólito ficcional, visto como categoria genológica ou modal ou como macro ou arquigênero.

Conforme observou Flavio García,

Em diferentes estudos acerca de obras literárias em que se verifica a manifestação do que, aqui, se convencionará chamar de insólito ficcional, o termo insólito aparece, por vezes, significando uma categoria ficcional comum a variados gêneros literários, sendo, desse modo, um aspecto intrínseco às estratégias de construção narrativa” (2012, p. 14) de uma quase infinita gama de textos que se podem abrigar sob o que Filipe Furtado denomina fantástico modo (2009). “Outras tantas vezes, […] o termo […] tem sido empregado para nomear uma espécie de macrogênero (REIS, 2001, p. 253), um tipo de arquiestrutura sistêmica, em oposição ao sistema real-naturalista” (2012, p. 15), que reuniria os muitos gêneros literários ou modos discursivos a que Furtado se refere, nos quais, segundo ele advoga, se dá a manifestação do metaempírico. (2009)

Sob o olhar da Poética, Manuel António de Castro, pondo-se a refletir sobre o insólito, advertiu que “A questão é mais do que o conceito, não em termos genéricos, mas na originariedade e complexidade” (2008, p. 9). Para ele, “Realidade e insólito são um paradoxo” (2008, p. 10), não havendo, uma ligação estritamente direta entre a “questão” e o “conceito”, uma vez que, “Em geral, os conceitos resultam de um certo paradigma, dentro do qual já se determina o que é a realidade e o que é o insólito” (2008, p. 10). Nessa perspectiva, “questões não se explicam, experienciam-se” (2008, p. 14), já os conceitos buscam-se explicar. Logo, “A questão do insólito se torna sempre estranha porque não se pode explicar, mas só experienciar” (2008, p. 14). Em sua visão, “a força e vigor do insólito está em quebrar os valores dominantes, em pôr em questão um certo mundo. […] Nesse sentido, o insólito passa a ser uma realidade enquanto sentido, mundo e verdade, que não se tem, trazendo tanto o novo, o admirável, o inaugural como o inusitado, o ameaçador, o desconhecido, o sem-sentido, sem-mundo, sem-verdade” (2008, p. 28).

A “questão” do insólito na ficção, a despeito do ponto de vista adotado na teoria ou na crítica, perpassa um difuso e confuso universo de conceitos. Observando-o, porém, como termo-conceito denominador de uma categoria da ficção ou de um macro ou arquigênero ficcional, ele se reveste de contornos um tanto mais confortáveis, fugindo seja da questão temática – aquilo de que o texto trata, o seu assunto – e da questão do efeito – aquilo que dissemina nos diferentes atos de recepção. É nessa ótica que se o vai apresentar aqui, procurando mapear algumas de suas ocorrências mais significativas e discutindo suas nuances de sentido.

Cingindo-se a situações em que a manifestação do insólito na ficção importa para a crítica, García (2012) menciona algumas poucas ocorrências diretas ou indiretas do termo, tanto na condição de substantivo, quanto na de adjetivo. Seu ensaio, ainda que não seja uma excursão exaustiva, nem se pretenda definitivo, pois muito ainda lhe fica de fora, apresenta amplo, diversificado e significativo cenário em que o termo é utilizado. Há que se destacar, todavia, que ele não atenta para o insólito como tema ou efeito, senão que como procedimento de construção narrativa. Desse modo, são determinantes as diferentes fundamentações teóricas que dão suporte às expressões da crítica que menciona ou cita.

Tomando-se por referência o Brasil, é inevitável iniciar por Antonio Candido (1918 – 2017), que, ao tratar de Murilo Rubião (1916 – 1991), em “A nova narrativa”, capítulo final de Educação pela noite e outros ensaios, afirma que, “Com o livro de contos O ex-mágico (1947), […] instaurou-se no Brasil a ficção do insólito absurdo” (1987, p. 208). (Conforme “Nota sobre os textos”, a comunicação, originalmente intitulada “O papel do Brasil na nova narrativa”, foi apresentada durante um “encontro sobre ficção latino-americana no Woodrow Wilson Center of Sholars, Washington, outubro de 1979”, tendo sido posteriormente publicada em Novos Estudos (Cebrap, I, 1, São Paulo, 1981), na Revista de Crítica Literária Latinoamericana (VII, 14, Lima, 1982) e, “Em espanhol, no livro coletivo Más allá del boom: literatura y mercado (México, Marcha, 1982) e em Casa de las Américas, 136, Havana, 1983” (CANDIDO, 1987, p. 217)).

Para Candido, Rubião antecipara-se duas décadas, com a publicação de O ex-mágico da taberna minhota, em 1947, ao boom da literatura hispano-americana, havido, na segunda metade da década de 1960, com a publicação e tradução em várias línguas mundo afora de Cem anos de solidão, do escritor colombiano Gabriel García Márquez, referência paradigmática ao real(ismo)-maravilhoso. Candido observa ainda haver “exemplos anteriores de outros tipos de insólito, sobretudo de cunho lírico, haja visto o admirável conto ‘O iniciado do vento’, de Aníbal Machado” (1987, p. 208), mas, como defende, terá sido com Rubião, sobretudo em 1966, publicando Os dragões e outros contos, que essa vertente ficcional se consolida.

Para se referir ao que identificou particularmente acerca da obra de Rubião, Candido reúne dois vocábulos designativos de possíveis gêneros ficcionais – insólito e absurdo –, e o faz empregando na função de adjetivo aquele dos dois que já contava com alguma, mesmo que com pouca, estabilidade. Jean-Paul Sartre e Albert Camus, filósofos e ficcionistas com destacada incursão pela dramaturgia, enveredaram pelo que a crítica, seguindo suas próprias considerações, designava por absurdo. Tal designação, entretanto, nunca abarcou, muito menos entre eles dois, um conceito pacífico. Hélder Ribeiro, recorrendo a considerações do franco-argelino, salienta que, “para Camus, o absurdo é uma relação entre o homem e o mundo, essencialmente um divórcio entre ambos. Não está nem num, nem no outro elemento de comparação – o homem e o mundo – mas nasce do seu confronto” (1996, p. 173). Assim, Candido combina dois termos com significações negativas para se referir às propriedades da ficção rubiana, o que potencializa seu caráter opositivo face à realidade racional e aristotélica.

O termo insólito, no entanto, já habitava o entorno das pesquisas em que Candido se via envolvido. Na década de 1960, ele orientara Lenira Marques Covizzi em seu mestrado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, cujo trabalho final, então intitulado CRISE DA MIMESE/ MIMESE DA CRISE – Algumas manifestações e significado do INSÓLITO em Guimarães Rosa e Borges, teria sido defendido publicamente em 5 de outubro de 1970 (COVIZZI, 1978, p. 13). Na década seguinte, orientaria o mestrado de Jorge Schwartz, na mesma instituição, com pesquisa versando sobre a obra de Murilo Rubião, no qual o autor, ao tratar do universo fantástico sob uma perspectiva de linguagem, subdivide-o em três categorias: o sólito, o insólito e o sobrenatural (SCHWARTZ, 1981, p. 54). A dissertação de Covizzi viria a ser publicada, no final da década de 1970, com o título O insólito em Guimarães Rosa e Borges (1978), bem como a de Schwartz, no início da década de 1980.

No capítulo I, “Uma ficção insólita num mundo insólito” (1978, p. 25-47), Covizzi principia delimitando as ferramentas que utiliza e circunscrevendo a metodologia que emprega para abordar seu objeto de estudo – a ficção de Rosa e de Borges –, mas não distingue, de modo satisfatório, os mundos de ficção, em que se compõem as imagens, dos mundos da realidade, em que se buscam os referentes dessas imagens. Adiante, no primeiro subcapítulo, “Indícios insólitos: a exceção feita literatura” (1978, p. 108-116), do capítulo 3, “Universo Borgiano: racionalização da perplexidade” (1978, p. 107-129), verticaliza a questão. Ela oscila entre tratar o insólito como categoria e gênero, sem problematizar uma possível distinção entre esses termos, e não se limita a falar de literatura, referindo-se à obra de arte genericamente. Nessa ótica, aponta o “caráter de produto da imaginação” (1978, p. 25-26), que identifica tratar-se “do insólito, que carrega consigo e desperta no leitor, o sentimento do inverossímil, incômodo, infame, incongruente, impossível, infinito, incorrigível, incrível, inaudito, inusual, informal…” (1978, p. 26).

Resvalando no conceito barthesiano de signo semiótico ou literário, Covizzi comenta que “não é o insólito um novo atributo da arte contemporânea, pois ele é uma característica que está na própria condição do ser fictício” (1978, p. 29), contudo, adverte que “ele passou a ser o elemento determinante de que nos utilizamos para ressaltar as transformações que a ficção vem sofrendo ao longo do século [XX]” (1978, p. 29). Para ela, “esse insólito se apresenta sob as mais diversas formas, não existindo um parâmetro de composição ficcional mais reconhecidamente importante” (1978, p. 29), e sua literatura é a “literatura das nuances, do sim e do não, donde a instituição da ambiguidade: questionando as convenções (nível teórico), passa a questionar – e não o contrário – os próprios resultantes dessas convenções (nível prático)” (1978, p. 29).

Covizzi afirma ser “muito normal a sensação de incômodo produzido pela leitura dessas obras: não somos lançados ao caos mas a uma especial ordenação do caos” (1978, p. 29). Ainda que ela identifique que as artes contemporâneas se caracterizam por buscar o afastamento da realidade básica (1978, p. 38), ela defende que a arte do insólito “Não é uma ficção de simples fuga, mas principalmente o testemunho de um sistema de vida paradoxal através de sua expressão” (1978, p. 39-40). Essa expressão artística conteria “o caos, determinando novos limites entre a realidade e a irrealidade na ficção” (1978, p. 41).

Seguindo esse norte, ela reúne sob a designação de insólito, seja visto como categoria, seja como gênero, uma diversidade de “manifestações congêneres” (1978, p. 36), que podem ser listadas, genericamente, da seguinte maneira: ilógico; mágico; fantástico; absurdo; misterioso; sobrenatural; irreal; supra-real; feérico; superstições populares; poesia; horrível; macabro; literatura policial; trágico; humour; utopia; fábula; ocultismo; psiquiatria; psicanálise; metafísico; ficção científica (1978, p. 36-37). Preservando-se o maior rigor adotado por Furtado em seu verbete “fantástico (modo)”, pode-se aproximar a conceituação de insólito sugerida por Covizzi à de discurso, ficção ou literatura do metaempírico por ele desenvolvida. Haveria, pois, uma clara homologia entre insólito e discurso, ficção ou literatura do metaempírico, ou, mesmo, entre insólito e fantástico visto por Furtado sob uma concepção modal.

Schwartz não se atém ao insólito, por não ser a questão central de seu estudo. Ainda assim, quando reflete sobre “O texto social” (1981, p. 77-80), observa que “São raros os momentos na obra do Autor [Murilo Rubião] em que o elemento insólito, ou mesmo o sobrenatural, não se converte em trampolim metafórico de uma crítica social” (1981, p. 77). Ele não esclarece a natureza desse elemento, permitindo, assim, que se pense em produto da composição macroestrutural do texto, em tema ou em efeito. Seja como for, identifica a presença de algum elemento insólito na obra rubiana.

Partindo do Brasil para a Hispano-América, é essencial destacar a perspectiva crítico-teórica de Renato Prada Oropeza (1937 – 2011), que entende que o insólito seja um metatermo (2006, p. 56), conceituando um elemento central e característico da configuração semiótica do fantástico (2006, p. 56). Prada Oropeza observa, no discurso fantástico que se erige a partir da segunda década do século XX, a irrupção do insólito em um mundo ficcional no qual reina uma aparente normalidade, conforme esta seja entendida e aceita pelo senso comum vigente. O mundo ficcional em que o insólito irrompe estaria despojado de elementos que sobressaltam o leitor, não havendo nele espaços explicitamente estranhos, como castelos, bosques lúgubres, cemitérios, lugares tenebrosos; tempos afastados do domínio quotidiano, remetendo ao distante e imemorial impossível de se localizar; personagens sobre ou extra-humanos, conforme os mortos que retornam da tumba ou os monstros em geral; ações inusitadas, tais quais as de zumbis que se alimentam de cérebros e vampiros que se nutrem de sangue humano, ou as de maridos que esquartejam prazerosamente suas mulheres (2006, p. 57).

Em sua perspectiva, o insólito surgiria no seio do universo racional das coisas, surpreendendo a normalidade desse universo (2006, p. 58), como produto de procedimentos de composição incongruente de espaços, tempos, personagens ou de narração de ações que não condigam com a experienciação quotidiana reinante em dado cronotopo. Ele seria resultante da presença de elementos narrativos cuja composição se dá de maneira incoerente com a lógica racional e aristotélica, instaurando uma espécie de “sem sentido” (2006, p. 58). O insólito não seria nem tema, nem efeito, mas um processo compositivo a que o produtor do texto recorreria para arquiteturar seu mundo de ficção, no qual as imagens construídas discursivamente se apresentassem em algum grau de dissonância em relação aos seus referentes acessados no mundo pretensamente real. O espaço, o tempo, as personagens ou as ações textuais não corresponderiam harmonicamente com o que se tem por real.

O recurso a estratégias de construção narrativa que promovem a instauração do insólito implica a composição de espaço, tempo ou personagens, isolada ou conjuntamente, bem como a efabulação, em desacordo com sua estabilidade no mundo objetivo que se toma por base para a elaboração dos mundos textuais. Disso resulta que as imagens conformadas no texto apresentem traços que borram, rasuram, arranham, fissuram, quebram, rompem, em diferentes graus, aspectos advindos de seus referentes buscados na realidade extratextual de que se nutre. Tal faz com que o produto desses procedimentos discursivos afaste-se, igualmente em escala variada, do produto costumeiramente advindo do emprego de protocolos comprometidos com o sistema semionarrativo real-naturalista. São esses produtos, de matriz e matiz distintas do real-naturalismo, em que se verifica a presença de composições com ele incoerentes, que se conceitua por insólito ficcional.

Sob a denominação abrangente de insólito ficcional se podem abrigar o fantástico – seja o gênero, seja especialmente o modo –; o maravilhoso – clássico, medievo, moderno ou contemporâneo –; o estranho – aquele de Freud trata em seu ensaio “Das Unheimliche” ou o que Todorov apresenta como contíguo ao fantástico –; o realismo maravilhoso, bem como suas muitas variantes, admitindo-se o realismo mágico, o realismo fantástico, o realismo animista; o absurdo – independentemente de entendido como o propôs Sartre, Camus ou qualquer outro –; os contos de fada em geral – ficando-lhes de fora muito poucas narrativas –; uma grande maioria das narrativas de mistério e policial; uma boa quantidade de textos da ficção científica; as produções que se alinham nos cenários da ficção distópica ou da ficção pós-apocalíptica; o fantasy.

REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática. p. 199-2015, 1987.
CASTRO, Manuel António de. A realidade e o insólito. In: GARCÍA, Flavio (Org). Narrativas do insólito: passagens e paragens. Rio de Janeiro: Dialogarts. p. 8-31, 2008. Disponível em: http://www.dialogarts.uerj.br/admin/arquivos_tfc_literatura/narrativasdoinsolito.pdf. Acesso em 22 jul. 2019.
COVIZZI, Lenira Marques. O insólito em Guimarães Rosa e Borges. São Paulo: Ática, 1978.
FURTADO, Filipe. Fantástico (modo). In: CEIA, Carlos. E-Dicionário de Termos Literários (EDTL). Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2009. Disponível em: http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/fantastico-modo/. Acesso em 21 jul. 2019.
GARCÍA, Flavio. Quando a manifestação do insólito importa para a crítica literária. In: GARCÍA, Flavio; BATALHA, Maria Cristina (Orgs). Vertentes teóricas e ficcionais do insólito. Rio de Janeiro: Caetés. p. 13-29, 2012.
PRADA OROPEZA, Renato. El discurso fantástico contemporáneo: tensión semântica y efecto estético. Semiosis, II, México,  v. 3, p. 53-76, 2006.
SCHWARTZ, Jorge. Murilo Rubião: a poética do uroboro. São Paulo: Ática, 1981.