GUY DE MAUPASSANT – ficcionista

Amândio Reis

Nascido em 1850 numa pequena vila rural na região da Normandia, em França, Henri René Albert Guy de Maupassant mudou-se para Paris em 1871, tornando-se em pouco tempo o mais novo protegido de Gustave Flaubert. Sob a tutela de Flaubert, o jovem Maupassant pôde integrar as tertúlias literárias organizadas pelo autor de Madame Bovary, e, assim, privar com alguns dos nomes mais destacados da cena literária da segunda metade do século XIX, incluindo Émile Zola, Edmond de Goncourt, Alphonse Daudet, o belga Joris Karl-Huysmans, o russo Ivan Turguêniev, e, inclusivamente, o escritor de origem norte-americana Henry James, que, embora mais velho do que Maupassant, começara também há pouco tempo a dar os primeiros passos no caminho da criação literária. De facto, uma década depois do seu encontro em Paris, num momento em que ambos haviam já alcançado relativo renome, o escritor francês ofereceria uma visita a Henry James em Londres, em 1885, reatando desse modo uma relação nem sempre harmoniosa em termos pessoais (BROOKS, 2007, p. 165), mas que, em termos artísticos, tem sido reavaliada pela crítica como uma das mais relevantes da literatura do fim do século XIX, e, em particular, no domínio do conto fantástico e da narrativa breve do fim-de-século, em que se pode melhor observar feições de uma influência muitas vezes insuspeita (FUSCO,  1994, p. 173).

Na verdade, embora, tal como James, Maupassant continue a ser referido como um dos mais importantes prosadores do realismo oitocentista, o autor de Bel Ami (1885) partilha com o escritor americano um interesse especial pelo género fantástico e pelo tema do insólito, que ambos exploram, desenvolvem e revolucionam em diversas frentes na sua ficção curta. Com efeito, o nome de Maupassant associa-se desde cedo ao sobrenatural com a publicação do conto “La main d’écorché” [“A mão esfolada”], em 1875, no qual se explora o motivo da mão mutilada, próprio do horror Romântico, que o autor parece ter colhido em obras como “Une Heure, ou la vision” [“Uma Hora, ou a visão”] (1801), de Charles Nodier, e “La main enchantée” [“A mão encantada”] (1854), de Gérard de Nerval (HINER, 2002, p. 203). Maupassant reescreverá este conto em 1883 sob o título “La Main” [“A Mão”], reformulando-o — depois da sua própria passagem pela Argélia, recente colónia francesa, como correspondente oficial do periódico Le Gaulois, em 1881 — em nova chave colonial: a “mão” em causa trata-se, agora, não de um amuleto encontrado no espólio de um feiticeiro, mas do membro de um nativo americano (talvez ainda vivo e sedento de vingança), obtido por um imperialista inglês num ato de violência e de “caça ao homem”. De facto, grande parte da produção ficcional do autor que surge a partir da primeira metade da década de 1880 atesta uma nova e fundamental correlação entre a vivência da alteridade, central nos seus contos de temática norte-africana, e a experiência do grotesco, do insólito e/ou do uncanny, ligação esta que se manifesta em obras como “Tombouctou”, em que se torna ainda visível a marca cultural e psicológica da recente Guerra Franco-Prussiana (REIS, 2017).

Contudo, “A Mão” relaciona-se também com outras histórias de molde inequivocamente sobrenatural, tais como “Auprès d’un mort” [“Ao pé de um morto”] (1883), “La Chevelure” [“A Cabeleira”] (1884), e “La Morte” [“A Morta”] (1887), nas quais, por um efeito de animação de objetos simbólicos ou através da aparição, real ou aparente, do próprio espectro, Maupassant se aproxima obliquamente do tópico do revenante, por conseguinte, da figura do morto-vivo, ou zumbi, modelados desde o início do século em Frankenstein (1818), de Mary Shelley, mas explorados também nos contos e nas novelas de Edgar Allan Poe, autor que, a par de outros, terá sido uma inspiração notória na vertente fantástica da obra de Maupassant.

É, porém, graças a textos em que associa a loucura e, mais concretamente, os ecos da disciplina emergente da psiquiatria, ao sobrenatural, tais como Lui? [Ele?] (1883), Un Fou? [Um Louco?] (1884), e, sobretudo, a trilogia do Horla, iniciada em 1885 com “Lettre d’um fou” [“Carta de um louco”], passando pela primeira versão de “Le Horla” [“O Horla”], em 1886, e concluída em 1887 com a versão expandida da novela “O Horla” (PONNAU, 1990, p. 298), que Maupassant é hoje recordado como um nome incontornável do conto fantástico. Concebendo uma criatura invisível e irrepresentável, cujo próprio nome (hors [fora] + [ali]) sugere as noções de exterior, estranho, outro, ou alheio, numa história cuja forma se confunde com a de um diário pessoal, Maupassant, tal como outros autores do seu tempo entre os quais se contam certamente Machado de Assis e Henry James, resgatou o elemento fantástico do interior do enredo para a superfície e a própria arquitetura do texto, equacionando-o assim também e essencialmente, como problema de representação associado às (im)possibilidades de uma literatura que, sem deixar de ser realista, almeja configurar, segundo os termos do autor: “factos naturais em que permanece, todavia, qualquer coisa de inexplicável e de quase impossível” (MAUPASSANT, 2008, p. 1367, tradução minha).

REFERÊNCIAS

BROOKS, Peter. Henry James Goes to Paris. Princeton e Oxford: Princeton University Press, 2007.
FUSCO, Richard. Maupassant and the American Short Story: The Influence of Form at the Turn of the Century. University Park: Pennsylvania State University Press, 1994.
HINER, Susan. Hand Writing: Dismembering and Re-Membering in Nodier, Nerval and Maupassant. In: Nineteenth-Century French Studies, v. 30, n. 3-4, p. 301-315, 2002. Disponível em: http://www.ncfs-journal.org/?q=node/809. Acesso em 13 out. 2019.
MAUPASSANT, Guy de. Le Fantastique. In: Croniques: Anthologie. Henri Mitterand (Ed). Paris: Le Livre de Poche (Librairie Générale Française), p. 1367-1370, 2008.
PONNAU, Gwenhaël. La folie dans la littérature fantastique. Paris: CNRS, 1990
REIS, Amândio. A história do futuro: ‘Tombouctou’, de Guy de Maupassant. InLettres Françaises, v. 1, n.18, p. 35-55, 2017. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/lettres/article/view/9685/6891. Acesso em 13 out. 2019.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

BAYARD, Pierre. Maupassant, Juste avant Freud. Paris: Les Éditions de Minuit, 1994.
BENHAMOU, Noëlle. Maupassantiana — Site consacré à Maupassant et à son oeuvre. Disponível em: http://www.maupassantiana.fr. Acesso em 13 out. 2019.
CASTEX, Pierre-Georges. Le Conte Fantastique en France de Nodier à Maupassant. Paris: José Corti, 1987.
DEFAZIO, Maria Teresa. Il Mito dell’io Impossibile: Allucinazioni e Identitá Mancate in Guy de Maupassant, Henry James, Luigi Pirandello. Roma: Bulzoni, 2004.
KIERNAN, Katherine D. Wickhorst. L’Entre-moi: Le Horla de Maupassant, ou un monde sans frontières. Littérature, n. 139, p. 44-61, 2005. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/litt_0047-4800_2005_num_139_3_1901. Acesso em 13 out. 2019.
MARQUER, Bertrand. Naissance du fantastique clinique: La crise de l’analyse dans la littérature fin-de-siècle. Paris: Hermann, 2014.