GIOCONDA BELLI – ficcionista

Daniele Aparecida Pereira Zaratin

O conjunto da obra da escritora nicaraguense Gioconda Belli (1948) se constrói a partir de um engenhoso trabalho com a linguagem que privilegia a emersão de vozes subalternas num contexto ficcional estruturado pelo mítico e atravessado pelo histórico. Conhecida principalmente por sua poesia feminista-libertária e por sua ativa participação na Frente Sandinista de Liberación Nacional (FSLN), grupo de resistência ao regime dos Somoza, Gioconda também conta com uma sólida produção em prosa: já escreveu e publicou literatura infantil, autobiografia e romances, sendo justamente por meio desse último gênero literário que se pode vislumbrar distintas perspectivas do insólito ficcional.

Em La mujer habitada (1988), seu romance de estreia, o enredo apresenta-nos duas personagens centrais: Itzá, indígena guerreira assassinada pelos espanhóis no período da colonização, e Lavinia, jovem arquiteta da década de 1970 que entra para a luta armada com o objetivo de combater o governo ditatorial de Faguas, país fictício criado pela escritora. Distantes temporalmente, Itzá e Lavinia têm seu alinhamento físico-psicológico por meio do insólito, fazendo com que ambas se unam em torno do desejo urgente e irremediável por reparação histórica diante de tantas injustiças perpetradas ao longo dos séculos. Ao predomínio dessa perspectiva do insólito, denominamos insólito histórico, pois:

Coloca em primeiro plano um contexto histórico disfórico, marcado pela violência do poder arbitrário, […] e privilegia a construção de personagens arquétipos de grupos violentados historicamente. Essas personagens questionam essa hegemonia repressiva e o fazem a partir da força propulsora do insólito (ZARATIN, 2019, p. 195)

Sofía de los presagios (1990) traz a história da protagonista que dá nome ao segundo romance de Gioconda. Ao se perder de sua mãe aos sete anos, Sofía é adotada por pessoas do povoado de Diriá. Por sua origem cigana e por sua chegada “inexplicável” no lugar, a protagonista é hostilizada por parte da comunidade, o que colabora para seu sentimento de “abandono” e incompletude. Casa-se tão pronto tenha a oportunidade, porém sofre uma pluralidade de violências por parte do esposo. Consegue fugir, reconstruir sua autonomia, resgatar sua memória, “romper el ciclo”, contudo ela não o faz só: Sofia conta com o auxílio de uma tríade de “bruxos”, os quais, por meio do uso deliberado do insólito, guiam e orientam sua trajetória. Denominamos a prevalência dessa perspectiva de insólito místico, porque:

Sua personagem central e eixos temáticos estruturantes suscitam reflexões acerca principalmente da circularidade trágica do destino e da condição feminina numa sociedade patriarcal. Nesse contexto adverso, bruxos e curandeiros surgem com seu conhecimento do sobrenatural e se constituem como auxiliares na restauração de uma harmonia desejada durante todo a narrativa pela protagonista (ZARATIN, 2019, p. 195)

O insólito místico se caracteriza, portanto, por sua utilização deliberada pelas personagens, cuja finalidade seria a de cooperar para a transformação da trajetória da protagonista no presente, realinhando sua biografia por meio do rompimento de ciclos danosos iniciados no passado. Nesse sentido, ele apresenta uma perspectiva mais particular de engajamento, oposto ao que observamos no insólito histórico, no qual o que prevalece é o coletivo.

Dialogando com imagens discursivas da literatura hispano-americana produzida especialmente na segunda metade do século XX, as narrativas da escritora nicaraguense naturalizam o insólito e sobrenaturalizam a realidade narrada ao sublinhar as perenes, variadas e insuportáveis injustiças sofridas e presenciadas pelas protagonistas. Nesse contexto adverso, o insólito se apresenta como elemento propulsor de suas trajetórias, como resposta possível ao intolerável. O insólito, portanto, impulsiona, determina, modifica, realinha, rege a biografia das protagonistas, colaborando para a (re)construção de seus percursos e para a recomposição de elos afetivos esfacelados, associando-se, inclusive, à vida e à morte de personagens.

Faz-se necessário observar, para finalizar, que o exposto nessas breves linhas buscou delinear, de forma sucinta, algumas características do insólito nos mencionados romances de Gioconda Belli. Há ainda muito o que refletir sobre esse amplo e singular universo narrativo.

REFERÊNCIAS

BELLI, Gioconda. La mujer habitada. Barcelona: Seix Barral, 2014.
BELLI, Gioconda. Sofia de los presagios. México DF: Planeta, Seix Barral, 2017.
ZARATIN, Daniele Aparecida Pereira. Perspectivas do insólito ficcional: uma análise dos romances de Gioconda Belli e María Amparo Escandón. 230f. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2019. Disponível em: http://tede.mackenzie.br/jspui/handle/tede/3975. Acesso em 14 set. 2019.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

BELLI, Gioconda. El país bajo mi piel. Memorias de amor y guerra. Nueva York: Vintage Español, 2003.
BELLI, Gioconda. Página oficial. 2019. Disponível em: https://giocondabelli.org/. Acesso em 21 set. 2019.
GARCÍA IRLES, Mónica. Recuperación mítica y mestizaje cultural en la obra de Gioconda Belli. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2003.
LEMOS, Bethania Guerra de. Sob o signo de Tláloc: construção identitária e memorial na obra de Gioconda Belli. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: http://www.letras.ufrj.br/pgneolatinas/media/bancoteses/bethaniaguerradelemosdoutorado.pdf. Acesso em 15 set. 2019.