FICÇÃO ESPECULATIVA

Alexander Meireles

Três perspectivas marcam o percurso da Ficção Especulativa ao longo da segunda metade do século XX dentro da crítica norte-americana. A primeira abordagem, remonta ao surgimento do termo nos territórios da Ficção Científica (FC) norte-americana de final dos anos quarenta por meio do escritor Robert A. Heinlein (Estranho em uma terra estranha, 1961). Heinlein usou “Speculative Fiction” em um ensaio de título “On the Writing of Speculative Fiction”, apresentado originalmente em um simpósio que veio a ser publicado na forma da antologia Of Worlds Beyond: The Science of Science Fiction Writing (1947), editada por Lloyd Arthur Eshbach (CLUTE & NICHOLLS, 1993). Todavia, ainda que o escritor tenha sido um promotor do termo na segunda metade do século XX, a palavra já tinha sido usada em 1889 pelo crítico M. F. Egan na seção Book-Talk da edição de outubro da Lippincott’s Monthly Magazine ao se referir ao romance Looking Backward, 2000-1887 (1888), de Edward Bellamy. (CLUTE, LAGFORD & NICHOLLS, 2019) Na sequência, “Speculative Fiction” também apareceu na edição de maio de 1900 da revista The Bookman, em que se comenta que o romance Etidorpha, or, The End of the Earth: the strange history of a mysterious being and the account of a remarkable journey, de John Uri Lloyd “criou bastante discussão entre as pessoas interessadas em ficção especulativa”.

Dentro da proposta de Robert A. Heinlein, a Ficção Especulativa seria uma Ficção Científica com foco maior no elemento humano. Ou seja, ao invés da narrativa focar prioritariamente na presença, constituição e utilização dos gadgets característicos nas histórias da chamada “Era de Ouro da Ficção Científica” (ROBERTS, 2018), como robôs, armas de raios e carros voadores, o que se teria, então, é o desenvolvimento de obras com personagens e relações humanas aprofundadas. Desta forma, segundo acreditava o escritor, a Ficção Especulativa poderia atrair novos leitores não afeitos tanto à linguagem tecnicista por trás dos contos e romances de FC que eram comumente encontrados no período, quanto a estrutura narrativa esquemática da Ficção Científica norte-americana em seus primeiros momentos. Heinlein, porém, restringia o campo da Ficção Especulativa ao universo da Ficção Científica, excluindo assim a Fantasia e o Horror, apenas para citar algumas das mais representativas vertentes do modo fantástico. Percebe-se, portanto, que a proposta do autor de Tropas Estelares (1959) estabelece uma crítica indireta ao tipo de ficção científica praticada ao longo das primeiras décadas do século vinte nas revistas pulp da época, como Amazing Stories, Science Wonder Stories e Astounding Stories, cujas histórias celebravam os produtos extrapolados da ciência e da tecnologia em detrimento ao enredo (CAUSO, 2003). Por conta dessa postura tanto elitista, ao sugerir que um tipo de ficção científica seria superior ao outro, quanto restritiva, ao abordar apenas a Ficção Científica dentro do escopo da Ficção Especulativa, esta primeira abordagem acabou caindo em desuso ao fim da década de sessenta.

A segunda abordagem da Ficção Especulativa tem seus primeiros momentos a partir de fins da década de 1960 e pode ser entendida como um desdobramento da diversidade temática e estrutural pela qual a Ficção Científica passou na década de sessenta através do New Wave. Esta visão mais ampla do termo tem na escritora, crítica e editora Judith Merril uma de suas figuras centrais (OZIEWICZ, 2017). Merril defendeu a substituição de “Ficção Científica” por “Ficção Especulativa” ao longo das doze antologias Year’s Best SF editadas por ela entre 1959 e 1969 e também na sua coluna da revista The magazine of Fantasy and Science Fiction entre maio de 1965 e maio de 1969 (MERRIL, 1967). Neste processo, as ações de Judith Merril ajudaram a Ficção Especulativa a se tornar associada a escritoras dos anos de 1970, como Doris Lessing, Ursula K. Le Guin e Margaret Atwood em narrativas marcadas por experimentações temáticas e estruturais semelhantes às praticadas pela chamada FC Soft, de forte base nas Ciências Humanas (CLUTE, LAGFORD & NICHOLLS, 2019), ao passo que a produção da chamada FC Hard, alicerçada nas Ciências Exatas, se vinculariam ao discurso patriarcal vigente nos primeiros anos da FC norte-americana (CLUTE, LAGFORD & NICHOLLS, 2019). Outra figura chave dentro desta abordagem é o da canadense Margaret Atwood, o que a tem levado a se envolver em polêmicas recorrentes junto aos leitores de Ficção Científica, visto que Atwood não reconhece suas obras como vinculadas a esta vertente do modo fantástico. Para ela, a Ficção Científica trata apenas de “polvos falantes no espaço sideral” (MCCRUM, 2010) ao passo que a Ficção Especulativa aborda “histórias que poderiam acontecer” (MANCUSO, 2016). Percebe-se que a tentativa de distinção de Margaret Atwood passa pela definição sobre o que pode ou não se efetivar como possível. Na visão de Atwood, por exemplo, seu romance A História da Aia (1985) é Ficção Especulativa porque a realidade distópica apresentada na obra pode vir a se tornar realidade. Já a Guerra dos mundos (1898), de H. G. Wells, na interpretação da canadense, é Ficção Científica porque traz uma situação que não tem possibilidade de ocorrer. Dentro desta abordagem também se nota indiretamente o uso do rótulo “Ficção Especulativa” por parte de escritores e escritoras que buscam elevar as suas obras de Ficção Científica, mais desenvolvidas em termos de enredo, personagem, e outros elementos da narrativa, em relação às narrativas pulp de space opera enxergadas por estes autores e autoras como pueris e descartáveis por trabalharem com elementos pertencentes a futuros distantes, sem conexão com o momento em que estão inseridas.

A Ficção Especulativa de Margaret Atwood está, assim, alinhada com o que o escritor Geoff Ryman batizou em 2004 de “Ficção Científica Mundana” (RYMAN, 2006), um movimento formado por escritores e escritoras que buscam criar um tipo de Ficção Científica sem seus elementos “Estúpidos” (CALVIN, 2009), como o grupo chamou discos voadores ou dispositivos de tradução universal, apenas citar um dos gadgets recorrentes da FC pulp. Em 2009 a escritora de Fantasia e Ficção Científica Ursula K. Le Guin criticou a posição de Margaret Atwood, chamando o termo “Ficção Especulativa” de uma “definição arbitrariamente restritiva” (MANCUSO, 2016) e expôs as motivações de Atwood como sendo uma tentativa da escritora canadense de não ter o seu nome vinculado a um “gueto literário” (MANCUSO, 2016). Por fim, a terceira abordagem da Ficção Especulativa se coloca como um termo mais inclusivo e menos rígido, não se configurando apenas como um gênero, como defendido por Robert A. Heinlein, Judith Merril e Margaret Atwood (OZIEWICZ, 2017). Ficção Especulativa, neste caso, ultrapassaria as fronteiras da Literatura para abarcar o amplo campo de obras não miméticas criadas no Cinema, Televisão, História em Quadrinhos, Jogos eletrônicos e seus cruzamentos. Incluem-se assim, dentro desta abordagem, a Lenda, o Mito, a Fantasia, o Gótico, o Horror, o gênero Fantástico, a Ficção Científica, o Conto de Fantasma, a Ficção Weird, o New Weird e outras modalidades do insólito. Todavia, a partir dos anos setenta, em decorrência do histórico de debates e polêmicas sobre o termos colocados por Heinlein, Merril e Atwood, um crescente número de pesquisadores vem optando pela utilização de “Fantástico” (Entenda-se aqui o modo Fantástico) como o termo apropriado para definir as muitas expressões de arte não mimética (OZIEWICZ, 2017). Esta preferência vem sendo refletida em estudos como The Fantastic in Literature (1976), de Erick S. Rabin e A Rhetoric of the Unreal: Studies in Narrative and Structure, especially of the Fantastic (1981), de Christine Brooke-Rose, além de eventos como The International Conference on the Fantastic in the Arts, evento anual que remonta a primeira edição em 1980. A partir deste evento foi fundada em 1982 a International Association for the Fantastic in the Arts, e sua publicação na forma do Journal of the Fantastic in the Arts (editado desde 1990).

Um dos argumentos a favor do uso do termo Fantástico em relação a Ficção Especulativa é que, dada a sua amplitude, o primeiro permite a discussão de expressões modernas e históricas da literatura fantástica, como o Épico de Gilgamesh e a Odisséia. Apesar da prevalência atual do termo Fantástico sobre Ficção Especulativa, desde o século XXI “Ficção Especulativa” vem sendo usado para se referir a obras fantásticas que contemplam culturas marginais e grupos minoritários, como a antologia Dark Matter: A Century of Speculative Fiction (2000), editada por Sheree Renée Thomas.

REFERÊNCIAS

CALVIN, Ritch. Mundane SF 101. In: HELLEKSON, Karen (Ed). SFRA Review, 289. Meza, Nova Zelândia: Mesa Community College, p. 13-16, 2019.
CAUSO, Roberto de Souza. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875-1950. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
CLUTE, John; LAGFORD, David; NICHOLLS, Peter (Ed.). The Encyclopedia of Science Fiction. Disponível em: http://www.sf-encyclopedia.com/. Acesso em 11 maio. 2019.
CLUTE, John & NICHOLLS, Peter. Speculative Fiction. In: CLUTE, John & NICHOLLS, Peter (Eds). The Encyclopedia of Science Fiction. New York: St. Martin’s Griffin, p. 1144-1145, 1995.
MANCUSO, Cecilia. Speculative or science fiction? As Margaret Atwood shows, there isn’t much distinction. In: THE GUARDIAN, 2016. Disponível em: http://bit.ly/2E4hJBa. Acesso em 11 maio. 2019.
MCCRUM, Robert. Margaret Atwood interview: ‘Go three days without water and you don’t have any human rights. Why? Because you’re dead’. InTHE GUARDIAN, 2010. Disponível em: http://bit.ly/2E4hJBa. Acesso em 11 maio. 2019.
MERRIL, Judith.“Introduction. In: MERRIL, Judith (Ed). SF: The Best of the Best, v. 3. New York: Delacorte Press, 1967.
OZIEWICZ, Marek. Speculative Fiction. InOXFORD RESEARCH ENCYLOPEDIA OF LITERATURE, 2017. Disponível em: http://bit.ly/309NyC1. Acesso em 11 maio. 2019.
ROBERTS, Adam. A verdadeira história da ficção científica: Do preconceito à conquista das massas. Tradução de Mário Molina. São Paulo: Seoman, 2018.
RYMAN, Geoff. The Mundane Manifesto. InNEW YORK REVIEW OF SCIENCE FICTION, 226. New York, 2006.