CYBERPUNK

Enéias Tavares

Cyberpunk é um tipo de ficção científica ambientado num futuro não muito distante, entre os séculos XXI e XXII, que não raro apresenta temas caros à contemporaneidade digital ou líquida: a relação dos homens com as máquinas, os limites e perigos de experiências de realidade virtual, a opressão do individuo num cenário controlado por frias, rígidas e abstratas corporações, a dissolução ou apagamento do sujeito em meio à massa e a extenuação das relações sociais, familiares e afetivas. Trata-se de um universo hipotético no qual o elemento retrô também está presente, sobretudo na ambientação noir e, muitas vezes, no enredo, com tramas de mistério, roubo e sedução, quer erótica quer financeira. Para entendermos as particularidades do gênero, detalharemos os principais elementos de sua construção para então nos debruçarmos sobre sua história e a formação do conceito, com especial ênfase nas obras que lhe são representativas, em especial da tradição anglófona e, por fim, brasileira.

Encontramos sua gênese entre o final da década de 1970 e início dos anos 1980, quando a percepção de gritantes diferenças econômicas e sociais, em contraste com um crescente otimismo quanto à tecnologia, levou vários autores norte-americanos e ingleses a produzirem obras de ficção científica que exploravam futuros ou passados possíveis. Esse tipo de ficção especulativa se afastaria das distâncias temporais e espaciais mais extremas para se debruçar sobre o planeta Terra e suas megalópoles, imaginárias ou não, construídas a partir da exploração/destruição do meio ambiente.

Neste cenário de aridez material, crise social e vazio existencial, as possibilidades virtuais propiciadas pelo boom da tecnologia computacional, pelo crescente desenvolvimento de computadores pessoais e por uma ainda incipiente rede de conexão mundial, energizaram a imaginação de autores e autoras. Os exploradores do passado, em direta relação com o aspecto mais marginal da literatura vitoriana europeia, criaram um gênero que anos mais tarde seria conhecido como Steampunk. Quanto aos aventureiros de um futuro distópico, estes produziriam obras que seriam reunidas sobre o rótulo de Cyberpunk.

Trata-se de um mundo niilista, sombrio e sinistro, no qual os poderes totalitários estatais foram substituídos por grandes corporações que têm no livre comércio e no capitalismo agressivo seus grandes pilares. Nessas destruídas paisagens pós-industriais, o futuro esperançoso e ordenado – e também distante das ficções futuristas dos séculos XIX e XX – dá lugar a uma proximidade temporal desesperadora, caótica e multifacetada, muitas vezes borrando as fronteiras entre a contemporaneidade e o futuro.

Definido como uma representação ficcional de um “high tech, low life”, o Cyberpunk aproxima um grande desenvolvimento tecnológico de uma crise cultural, existencial e econômica, na qual seres humanos sobrevivem em meio a um selvagem mundo pós-industrial, ultracapitalista e multicultural. Não raro buscando um niilismo e uma atmosfera do cinema noir, seus heróis típicos são páreas sociais, detetives problemáticos ou agentes contratados que agem menos por razões éticas e mais por necessidades econômicas, isso quando suas cínicas visões de mundo não objetivam apenas a fuga do mundo através de um sistema virtual que lhes propiciará a próxima dose, conexão ou sonho lúcido.

Lawrence Person, em seu “Notes Toward a Postcyberpunk Manifesto”, descreveu do seguinte modo os habitantes desse mundo: “Classic cyberpunk characters were marginalized, alienated loners who lived on the edge of society in generally dystopic futures where daily life was impacted by rapid technological change, an ubiquitous datsphere of computerized information, and invasive modification of the human body” (1999, digital).

Embora as primeiras obras essencialmente cyberpunks tenham sido publicadas na década de 1980, foram as duas décadas anteriores que produziram as premissas sobre as quais os autores do gênero encontrariam as bases de suas distorcidas e experimentais ficções futuristas. Nesse sentido, a revista New Worlds – editado por Michael Moorcock (1939) –, uma das publicações mais representativas do movimento New Wave da Ficção Científica, incentivou seus autores a buscarem maior experimentação formal e a expressarem visões de mundo mais próximas do presente, alterando o foco da alta ciência para os seus reflexos sobre comunidades sociais marginalizadas. Associados a esse momento e a essas preocupações estiveram autores como J. G. Ballard (1930-2009), Harlan Ellison (1934-2018), Philips Jose Farmer (1918-2009) e Philip K. Dick (1928-1982).

Algumas de suas obras acabaram por resultar no “estilo” e no “conceito” que os abarcaria, sendo ele criado em 1980, quando Bruce Bethke (1955) estava escrevendo um conto intitulado “Cyberpunk”. Este, porém, só seria publicado três anos mais tarde, na revista Amazing Science Fiction Stories. Guardemos essa data, 1983, pois algo muito importante para o conceito e também para Bethke, aconteceria nesse ínterim. Falamos de uma obra cinematográfica de grande relevância para toda a década e – talvez, para a cultura ocidental contemporânea. Falamos do filme Blade Runner, dirigido por Ridley Scott (1937) a partir de um roteiro problemático levemente baseado na obra de Philip K. Dick, Do androids dream of electric sheep?, de 1968.

Assim, mesmo que Bethke tenha dado ao fenômeno seu nome, não é impreciso afirmarmos que seus verdadeiros pais – mesmo que indiretos – tenham sido Philip K. Dick e Ridley Scott. O primeiro deu ao futuro cyberpunk sua alma e ideário, enquanto o segundo forneceu-lhe sua corporeidade e visualidade. Blade Runner torna uma obra literária de alcance relativo numa das peças cinematográficas mais complexas e instigantes da história do cinema. Nela, o enredo de ação ganhou atmosfera noir e uma ambientação absolutamente crível, com seus carros voadores, implantes de memória, cidades poluídas vivendo uma interminável noite transpassada por outdoors gigantescos que anunciam não apenas produtos e serviços, como a exploração de outros planetas, já que a vida na Terra tornou-se impraticável.

Um ano após o conto de Bethke sair, dando ao movimento cyberpunk seu nome, o escritor americano-canadense William Gibson (1948) publica a obra seminal – não erroneamente considerada a própria fundadora da estética cyberpunkNeuromancer. Buscando a ambientação de Blade Runner com o ideário presente em outro filme do mesmo período, Tron (de Steven, Lisberger, 1982), Gibson cria um mundo infernal apocalíptico no qual violência, conflito e delírio são constantes tanto no mundo real quanto no seu falso substituto virtual, tudo isso permeado de uma experimentação estilística que até hoje fascina leitores e pesquisadores. Case, seu protagonista, é um pirata virtual que se une a outros párias para roubar informações de um grande conglomerado, dando ao tema “assalto virtual” seu ponto inicial e resultando em obras tão dispares – e tão estranhamente similares – quanto Matrix (1999), de Lana e Lilly Wachowski, e Inception (2010), de Christopher Nolan.

Neuromancer ganhou duas continuações – Count Zero (1986) e Mona Lisa Overdrive (1988) – ambientadas no mesmo universo, porém protagonizados por outros personagens, numa tríade de livros conhecida como “The Sprawl Trilogy”. Com ela, Gibson acabou por tornar-se, nos dizeres de Adam Roberts, um “escritor talismânico para muita gente no mundo da FC, alguém que definiu um estilo particular, um frescor pós-industrial, leve e pós-moderno” (2018, p. 590).

Outras obras de relevância para a consolidação do Cyberpunk são os contos “Minority Report” (1956) e Adjustment Team (1958), de K. Dick, e “Johnny Mnemonic” (1981) e “New Rose Hotel” (1984), de Gibson. As quatro obras seriam adaptados para o cinema em anos futuros, com resultados díspares: Johnny Mnemonic (1995), de Robert Longo, New Rose Hotel (1998), de Abel Ferrara, Minority Report (2002), de Steven Spielberg, e The Adjustment Bureau (2011), de George Nolfi. Dessas, apenas a película de Spielberg foi significativa, sobretudo por unir o paradoxo destino versus vontade individual, com alusões de mito de Édipo e à sua versão na tragédia de Sófocles, à estética neo-noir de Blade Runner.

De narrativas longas, destacamos a trilogia Eclipse, do norte-americano John Shirley (1953) – composta por Eclipse (1985), Eclipse Penumbra (1988) e Eclipse Corona (1990). A série de livros apresenta uma trama política que projeta numa futura Europa invadida pela Rússia Soviética o clima de insegurança e paranoia da Guerra Fria. Outra autora importante é a também norte-americana Pat Cadigan (1953), em particular pelos romances Synners (1991), que trabalha com a hipótese de vírus de computadores desenvolverem consciência, e Tea From na Empty Cup (1998), obra que opõe experiências virtuais com prazeres sensoriais e uma jornada de caráter místico e espiritual.

Como sua contraparte Steam, o Cyberpunk é não raro mencionado como uma estética, pois seus traços estilísticos estão no cinema, na música, nos quadrinhos, nos jogos e em outros produtos culturais, além da óbvia presença na moda urbana e música eletrônica, além de figurar em importantes reflexões sobre contemporaneidade e modernidade. Exemplo disso é o livro de Pierre Levy, Ciberespaço (1997). Se por um lado a obra tornou-se referência para qualquer reflexão sobre a relação contemporânea entre homens, máquinas e internet, por outro, é criticada pelo tom datado e já falho em diagnosticar a principal característica da contemporaneidade: sua rápida e fugidia mutabilidade. Para a ficção cyberpunk, o termo também já era datado, uma vez que sua aparição se deu quinze anos antes no conto “Burning Chrome” (1982), de William Gibson, publicado na revista de ficção científica e ciência Omni.

Nas últimas décadas, o gênero desgastou-se, apesar dos esforços do próprio Gibson em levá-lo aos seus limites, como fez em obras como Virtual Light (1993) e, mais recentemente, no ultraexperimental The Peripheral (2014). Entretanto, sua estética consolidada e as explorações mais comuns sobre os prazeres e perigos da realidade virtual – possibilidade que ainda não se concretizou totalmente, apesar das inúmeras projeções de autores, cientistas e tecnicistas – parecem ter chegado ao seu limite.

Roberts aproxima o fenômeno da pós-modernidade e sua ênfase na “superfície sobre a profundidade, o presente em mudança em vez do passado, a colagem, a citação e a intertextualidade em vez da originalidade” somado a um “eufórico esvaziamento do conteúdo emocional” onde pode-se tudo e sente-se quase nada (2018, p. 590). Talvez estejamos esperando uma concretização de algumas de suas projeções para vermos o gênero avançar para além da típica visão de um futuro distópico, cínico e sombrio. Enquanto um “Neo-Cyberpunk” não surge, outras explorações espaço-temporais são pensadas e criadas, talvez não tão escuras, mas igualmente pouco esperançosas.

Como adendo a esse percurso histórico, adicionamos uma rápida menção à presença do gênero no Brasil. Aqui, destacamos a trilogia do músico carioca Fausto Fawcett (1961) Santa Clara Poltergeist (1991), Básico Instinto (1992) e Copacabana Lua Cheia (2002), obras que misturam tecnologia, erotismo, espiritualidade e problemática social com ambientação nacional. Outros romances que trabalham com a mesma estética são as obras de Guilherme Kujawski (Piritas Siderais: Romance Cyberbarroco, de 1994), Fábio Fernandes (Os Dias da Peste, de 2009), e Richard Diegues (Cyber Brasiliana, de 2010). De pesquisas acadêmicas sobre a produção nacional de obras cyberpunk, sugerimos a dissertação e a tese de Rodolfo Rora­to Londero, trabalhos que tratam respectivamente da obra de Fawcett e da ficção cyberpunk na América Latina. Também são obrigatórias sobre o tema a tese de doutorado de Roberto de Sousa Causo dedicada, ao New Wave e ao Cyberpunk no Brasil, e a dissertação de Fábio Fernandes, esta dedicada ao imaginário Cyber na obra de Gibson.

REFERÊNCIAS

PERSON, Lawrence. Notes Toward a Postcyberpunk Manifesto, 1999. Disponível em: https://news.slashdot.org/story/99/10/08/2123255/notes-toward-a-postcyberpunk-manifesto. Acesso em 26 mar. 2019.
ROBERTS, Adam. A verdadeira história da Ficção Científica: Do preconceito à conquista das massas, 2018. São Paulo: Seoman.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

CAUSO, Roberto de Sousa. Ondas nas praias de um mundo sombrio: New Wave e Cyberpunk no Brasil. Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos em Inglês) 315f. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
CAVALLARO, Dani. Cyberpunk e Byberculture: Science Fiction and the Wok of William Gibson. Londres: Athlone Press, 2000.
FERNANDES, Fábio. A Constru­ção do Imaginário Cyber: William Gibson. (Dissertação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.
LONDERO, Rodolfo Rorato. A Recepção do gênero cyberpunk na Literatura Brasileira: O caso Santa Clara Poltergeist. (Dissertação de Mestrado). Três Lagoas, Mato Grosso do Sul: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2007.
LONDERO, Rodolfo Rorato. Futuro esquecido: a recepção da ficção cyberpunk na América Latina. (Tese de Doutorado). Santa Maria, Rio Grande do Sul: Universidade Federal de Santa Maria, 2011.
JAMESON, Fredric. Archaeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science Fictions. Londres: Verso, 2005.
MATANGRANO, Bruno Anselmi; TAVARES, Enéias. Fantástico Brasileiro: o Insólito Literário do Romantismo ao Fantasismo. Curitiba: Arte & Letra, 2018.