BRUXA

Ana Carolina Lazzari Chiovatto

No Dicionário Houaiss, consta como primeiro registro do termo “bruxa” (1559) a seguinte definição: “mulher que tem fama de se utilizar de supostas forças sobrenaturais para causar malefícios, perscrutar o futuro e fazer sortilégios, feiticeira”. A segunda acepção, por extensão de sentido, diz: “mulher muito fria e/ou azeda e mal-humorada”. Em geral, em português os termos com inflexão de gênero só são dicionarizados no masculino, mas nesse caso o feminino precede. Um bruxo é o “homem que, como as bruxas, se utiliza de supostas forças sobrenaturais para causar malefícios” (grifos meus) e, por extensão de sentido, “mago, mágico”. Seu sentido figurado é “homem habilíssimo, que faz prodígios”. A diferença das flexões do termo está no estereótipo histórico que ele descreve. O bruxo entendido enquanto mago tem uma trajetória diferente da bruxa, especialmente na carga negativa atrelada.

Como o vampiro, o lobisomem e outros monstros, a bruxa inicialmente corporifica a alteridade: medos e desvios de conduta da cultura onde se insere. Nas sociedades onde a bruxaria é vilanizada, desde a Antiguidade, em povos da Suméria, da Babilônia e da Assíria, relaciona-se a pessoas de baixo estatuto social, dentre as quais as mulheres costumam figurar. O mesmo se dá na Grécia, onde a magia não é vista com bons olhos. Hécate, deusa tradicionalmente associada à bruxaria, é vista com desconfiança. A feiticeira Circe antagoniza Ulisses num primeiro momento e, mesmo ao ajudá-lo, ainda é a responsável por mantê-lo anos longe de Ítaca. Outra personagem associada à figura da bruxa, Medeia, na versão mais conhecida do mito, mata os próprios filhos. Em Roma, houve queima de bruxas muito antes do advento do Cristianismo (HUTTON, 2017). A bruxaria até então é inerente à pessoa ou pode ser aprendida com alguém já adepto ou com espíritos, e configura um poder ilegal pelo seu potencial de levar populações vulneráveis a se sobreporem às classes dominantes. Com a bula papal de 1484, o papa Inocêncio VIII passa à Inquisição a jurisdição sobre o processo contra bruxas. Após a Reforma Protestante, são também caçadas pelas justiças eclesiástica ou secular, dependendo do país. A partir daí, existe uma crescente ligação entre a figura da bruxa e o Diabo cristão.

Embora tenha havido homens processados por bruxaria nos mesmos termos que as mulheres, a figura estereotípica é feminina. Historicamente, a população feminina teve direitos de propriedade restritos, quando não negados, portanto maior propensão à mendicância na velhice. A frágil situação financeira as tornava propensas a roubar, praguejar e reclamar contra quem lhes negasse dinheiro e/ou alimento, o que, na época, poderia ser evidência de bruxaria, particularmente se alguma das vítimas de seu “mau olhado” ou “má língua” contraísse alguma doença fatal. O Malleus Maleficarum (1486) de Heinrich Kramer (e, a partir da edição de 1487, assinado também por Jacob Sprenger) lista todas as fraquezas do corpo e do caráter femininos, capazes de tornar as mulheres mais propensas à bruxaria do que os homens, a partir do pecado de Eva. Apesar de atualmente mais famosa do que suas sucessoras, a obra dos inquisidores alemães não era tão diretiva no seu próprio tempo quanto hoje alguns estudos datados levam a crer (CLARK, 1997). Teólogos e juristas escreveram tratados, criando acalorados debates entre católicos e protestantes, entre crentes e céticos.

O atribulado percurso histórico da figura da bruxa, assim, está no cerne da multiplicidade de significados que assume hoje em dia. Ainda aparecendo como antagonista em obras de terror e histórias destinadas ao público infantil tornou-se desde os anos 1970 uma imagem recorrente nas retóricas feministas (PURKISS, 1996).

The Weird Sisters (Shakespeare, MacBeth, Act 1, Scene 3). Gravura de John Raphael Smith (1785), a partir da obra homônima de Fuseli. The Metropolitan Museum.

Vista como a alteridade mais abjeta, cheia de crueldade, rancor e inveja em diversos discursos históricos, teve imagem semelhante tanto na pena de escritores como Shakespeare (com as icônicas Weird Sisters da tragédia Macbeth) e seus contemporâneos, quando a crença na realidade da bruxaria ainda era muito difundida, quanto na de autores como Charles Perrault e, mais adiante, os irmãos Grimm (em cujos contos sogras e madrastas malvadas frequentemente revelam-se como ogras e bruxas), chegando a L. Frank Baum em seu O Mágico de Oz (1900) e todas as adaptações de sua obra. A primeira adaptação fílmica desta, de 1939, inaugurou a imagem da bruxa de pele verde, até então inédita (CHIOVATTO, 2017). O clássico escritor infantil Roald Dahl escreveu Bruxas (1983), que ganhou a adaptação Convenção das Bruxas (1990). Nesse sentido, são emblemáticas as animações da Disney, muitas das quais oriundas de contos de fadas, e filmes como Abracadabra (1993), Caça às Bruxas (2011) e João e Maria: Caçadores de Bruxas (2013).

Por outro lado, a bruxa tem outras facetas. Michelet, em seu ensaio La Sorcière (1892), defendeu uma visão romântica da bruxa da floresta, conhecedora de todas as curas, bondosa injustiçada. Sua visão encontra ecos em diversas obras e também na forma como o feminismo a utiliza como prova da misoginia do patriarcado e símbolo de resistência.

A bruxa encontra-se presa entre dois polos incompatíveis e irreconciliáveis: vítima indefesa de uma sociedade que a usa conscientemente como bode expiatório, e perpetradora de alguns dos piores crimes contra a moralidade e a humanidade, tais como canibalismo, incesto e assassinato.

Witches at their incantations, de Salvador Rosa (1646), óleo sobre tela. National Gallery.

Sua ambivalência na esfera do real reflete-se em sua grande versatilidade em representações artísticas: na série televisiva Penny Dreadful (2014-2016), por exemplo, têm-se a figura da bruxa clássica de terror e a da bruxa da floresta injustiçada; na sociedade da série literária Harry Potter, há releituras dos mais variados estereótipos de bruxa e mago. Já a bruxa adolescente da série televisiva Sabrina (1996-2003), antes simpática e atrapalhada, ganhou releitura com contornos satânicos e dualidade moral, primeiro para HQs (2014) e foi adaptada para a Netflix (2018). O filme Jovens Bruxas (1996) foi um marco como representação da adolescente rebelando-se contra normas sociais. Recentemente, a série colombiana Sempre Bruxa (Netflix, 2019-) ecoa um estereótipo antigo: a bruxa enquanto minoria racial. A protagonista, negra escravizada, é acusada de bruxaria ao se envolver com o filho do senhor, e vai parar no futuro para salvá-lo e salvar a si mesma. Essa tradição racista com a qual a série dialoga também existe no Brasil. Na virada do século XIX para o XX, temos bruxas mestiças de negros e/ou indígenas em contos como “A Feiticeira”, de Inglês de Souza, no qual a minoria racial é só mais uma reafirmação da alteridade coroada pela bruxaria. Em “As Bruxas”, de Fagundes Varela, as personagens do título levam marinheiros para a Índia durante uma noite, fazendo alusão ao voo noturno, onde eles, inebriados, testemunham festejos associados ao sabá, e têm a oportunidade de vê-las transformarem-se de jovens atraentes em velhas disformes. Embora a etnia das personagens não seja descrita, existe uma ligação entre o “exótico” e o sobrenatural assustador.

Em Portugal, a escritora feminista Ana de Castro Osório lançou a noveleta “A Feiticeira” (1908), na qual se discute a dicotomia entre as mulheres de sexualidade não-conforme e aquelas de comportamento exemplar, usando para tanto a imagética da bruxaria, num conto fantástico todoroviano.

Na literatura brasileira atual, um exemplo de bruxa é a necromante aprendiz Julia Yagami, do romance de fantasia urbana Amores, Exorcismos e uma Dose de Blues (2014), de Eric Novello. Embora seja uma coadjuvante com participação limitada no enredo, sua existência associa a tradição da bruxa à do mago (CHIOVATTO, 2018), aliando aptidão e aprendizado acadêmico, e atrela uma minoria racial à bruxaria de modo euforizado. Ela não é alteridade, e sim alguém passível de identificação com o leitor, à semelhança das personagens bruxas no contexto feminista e no contexto das obras para jovens adultos, a partir de Harry Potter.

REFERÊNCIAS

CHIOVATTO, Ana Carolina Lazzari. A representação do feminino no mundo de Oz, de L. Frank Baum. (Dissertação de Mestrado). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2017. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8147/tde-08052017-115800/pt-br.php.
CHIOVATTO, Ana Carolina Lazzari. O mago anti-herói de Eric Novello. Abusões, v. 07, n. 07, ano 4. Rio de Janeiro: UERJ, 2018. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/abusoes/article/view/34293.
CLARK, Stuart. Thinking with demons: the idea of witchcraft in Early Modern Europe. Oxford: Clarendon Press, 1997.
HUTTON, Ronald. The witch: a history of fear, from ancient times to the present. New Haven: Yale University Press, 2017.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

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Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Ed. Eletrônica. Rio de Janeiro: Instituto Houaiss de Lexicografia, 2014.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução de Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.
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GRIMM, Wilhelm; GRIMM, Jacob. Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos, tomo 1. Tradução de Christine Rohrig. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
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