AUTÔMATO

Alexander Meireles

Antes da criação dos termos Androide (CLUTE & NICHOLLS, 1995, p. 34), Robô (SILVA, 2012) e Ciborgue (CLYNES & KLINE, 1960, p. 27), todo engenho com aparência de ser humano ou de outro animal capaz de reproduzir movimentos por meios mecânicos ou eletrônicos era chamado de “Autômato”, cuja etimologia se liga ao grego automaton (auto, “próprio” + matos, “pensamento”, “animado”, “vontade”). Marcando presença na literatura ocidental desde A Ilíada, de Homero na forma dos tripodes do deus Hefesto, o autômato ressurgiu na Europa renascentista pelas mãos do italiano Leonardo da Vinci. Em fins do século quinze o inventor concebeu ideias sobre um cavaleiro alemão automatizado na forma de uma estrutura que seria inserida em uma armadura medieval e movimentada por meio de manivelas e cabos. Também conhecido como “Soldado Robô” ou “Robô de Leonardo”, estas anotações foram redescobertas no século vinte e finalizadas em 2002 por Mark Rosheim (2016).

O autômato de Leonardo da Vinci se mostrou funcional e podia sentar, ficar de pé, virar a cabeça, cruzar os braços e até levantar o visor. Modelos mais desenvolvidos surgiriam no século dezoito através das criações de diferentes engenheiros, mecânicos, músicos e relojoeiros, como Jacques de Vaucanson e Pierre Jaquet-Droz (FLORESCU, 1998, p. 198-199). Exibidos entre 1738 e 1774 como instrumentos de entretenimento para as cortes da Europa, os autômatos fascinaram plateias em todas as suas apresentações. Criaturas mecânicas como “O Escritor”, “A Música” e “O Desenhista”, de Pierre Jaquet-Droz se inseriam no contexto do século dezoito de valorização da ciência em detrimento da Religião, as criações de Jaquet-Droz eram tão sofisticadas que levantaram debates sobre o principio da vida e a definição de humano. Segundo estudiosos como Radu Florescu (1998) e Mario Praz (1968), Mary Shelley teria assistido a uma das apresentações do autômato Escritor e se impressionado com a aparência de vida da criação de Jaquet-Droz. Anos mais tarde, ela criaria a obra definitiva sobre a busca do ser humano em criar vida artificial: Frankenstein (1818). Além de Frankenstein, os autômatos de Pierre Jaquet-Droz também exerceram influência em outras obras fantásticas do século dezenove, mostrando que, a partir dali e ao longo do século vinte, Fantasmas e Vampiros passariam a dividir a atenção dos leitores com os produtos da ciência e do progresso. Mas a posição de primeiro autômato na Literatura, na verdade um autômato feminino, pertence à Olympia, da obra O homem de areia” (1817), do alemão E. T. A. Hoffmann.

Ainda na primeira metade do século dezenove o norte-americano Edgar Allan Poe tratou do tema no ensaio “O Jogador de Xadrez de Maelzel” (1836), publicado na edição de abril da revista Southern Literary Messenger e que abordou um jogador de xadrez autômato fraudulento manipulado por duas pessoas. O mistério sobre estes seres artificiais também embalou o conto “The Bell-Tower” do norte-americano Herman Melville, publicado na edição de agosto de 1855, na revista Putnam’s Monthly. Xadrez e autômatos voltaram a se encontrar no conto “O feitiço e o feiticeiro” (1894), do norte-americano Ambrose Bierce. Neste caso, um jogador de xadrez autômato se revolta contra seu criador e o mata após levar um Xeque-Mate.Longe de se constituírem um elemento único, ligado ao tema dos homens artificiais, o autômato, o androide, o ciborgue e o robô possuem especificidades simbólicas e narrativas, ainda que estas possam se cruzar. Em virtude da sua semelhança física e, muitas vezes, comportamental com os seres humanos autômatos e androides são comumente utilizados em narrativas em que as fronteiras entre o natural e o artificial são colocados em xeque, a ponto de os próprios seres artificiais desconhecerem sua verdadeira natureza. Esse é o caso, para citar dos exemplos de mídias diferentes, do protagonista do conto “A formiga elétrica” (1969), de Philip K. Dick e os anfitriões da série televisiva Westworld. A prevalência do autômato/androide feminino aponta tanto para o desejo masculino de submissão e esvaziamento do ser feminino como instrumento das vontades do homem quanto para a ameaça que a figura da mulher enquanto ser incompreensível e imprevisível exerce sobre a imaginação masculina, como observados nos seres criados em O homem de areia”, A Eva futura e Metropolis.

No caso do robô, a etimologia de seu nome faz com que este personagem seja recorrentemente explorado em obras que remetam a questões de grupos minoritários ou socialmente desprivilegiados. Na adaptação cinematográfica de 2004 da coletânea de contos Eu, Robô (1950), de Isaac Asimov, por exemplo, os robôs são associados a imigrantes latinos e outros marginalizados na América, sendo reservados a estes seres artificiais empregos de menor prestígio social, como empregado doméstico, catador de lixo, cuidador de cachorros e garçom. Por ser o mais alinhado com questões atuais do impacto da tecnologia sobre o ser humano na esfera social e em seu próprio corpo, o ciborgue vem sendo amplamente utilizado, principalmente no subgênero Cyberpunk, para discutir as fronteiras entre o ser humano e a máquina e como as partes se influenciam. Da mesma forma, o ciborgue permite contestar a arbitrariedade da construção de gêneros na sociedade usando a máquina como subversor das fronteiras entre o masculino e o feminino, algo expresso no filme Matrix (1999), onde o protagonista Neo sente o ato da penetração ao ser conectado pela primeira vez, via pino inserido em sua nuca, ao mundo virtual. O ciborgue também foi acolhido por teóricas para debater o lugar social de grupos específicos.

Esse é o caso de Donna Haraway com seu ensaio “O manifesto ciborgue” (1985), em que a crítica propõe novos caminhos para o Feminismo além das fronteiras de gênero. Na proposta de Haraway, a imagem do ciborgue como criatura composta por fusões entre o social e a ficção, entre máquina e organismo, permite ao Feminismo de base socialista, marxista e radical em contemplar as diferenças entre as mulheres.


REFERÊNCIAS

CLUTE, John & NICHOLLS, Peter. Androids. In: CLUTE, John & NICHOLLS, Peter (Eds.). The Encyclopedia of Science Fiction. New York: St. Martin’s Griffin. p. 34-35, 1995.
CLYNES, Manfred E., KLINE, Nathan S. Cyborgs and space. In: ASTRONAUTICS, September, 1960. Disponível em: http://bit.ly/2EgAq4E. Acesso em 18 maio. 2019.
FLORESCU, Radu. Em busca de Frankenstein: o monstro de Mary Shelley e seus mitos. Tradução de Luiz Carlos Lisboa. São Paulo: Marcuryo, 1998.
SILVA, Alexander Meireles da. Sobre robôs e insetos: a crise do fantástico em Karel Capek e Franz Kafka. In: REVISTA LETRAS & LETRAS. n. 2, v. 28, 2012. Disponível em: http://bit.ly/2Q8Ocv2. Acesso em 18 maio. 2019.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

HARAWAY, Donna. Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz. (Org.). Antropologia do Ciborgue: As vertigens do pós-humano. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica editora. p. 36-118, 2000.
PRAZ, Mario. Introduction. In: FAIRCLOUGH, Peter (Ed.). Three Gothic Novels. Baltimore: Penguin Books, 1968.
ROBERTS, Adam. A verdadeira história da ficção científica: Do preconceito à conquista das massas. Tradução de Mário Molina. São Paulo: Seoman, 2018.
ROSHEIM, Mark. Leonardo’s lost robots. New York: Springer, 2016.