ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS, literatura – Lewis Carroll

Ana Carla Vieira Bellon

É comum que a primeira leitura desta obra, escrita por Lewis Carroll e publicada pela primeira vez 1865, provoque a necessidade de releitura, pois a radicalização de sentido é tal que dificilmente o leitor compreende seus mecanismos de modo instantâneo. Isso acontece porque além da construção de um mundo fantástico, ou maravilhoso, há também enfrentamentos linguísticos que se constroem no campo do insólito ficcional. A aparente loucura do País das Maravilhas esconde o inexplicável, o não convencional, a quebra do estabelecido. Ao mesmo tempo que a obra é aberta a leituras de diferentes níveis, sendo acessível desde ao público infantil até o público acadêmico com interesse científico. Essa democratização da leitura ocorre justamente por meio do insólito ficcional na medida em que é no insólito que imagens são construídas, o humor, as analogias etc.O país das maravilhas é construído por meio de uma série de jogos de lógica matemática e até de alguns pressupostos físicos inéditos que serviram, mais tarde, como base para estudos na área. Além disso, a construção linguística desta obra rendeu, mais tarde, inúmeros estudos sobre o nonsense, revelando mecanismos lógicos de geração de sentido e não uma linguagem disparatada ou o avesso do sentido.

O insólito pode parecer — na medida em que se tem o senso comum o entendido — como algo irreal, impossível, onírico, no entanto ele produz vida e realidades. O insólito produz encontros entre reinos distintos como o que ocorre no episódio em que uma criança se transforma em porco. Há um encontro inesperado que não pede passagem entre animal e humano, e é na fusão que há o acontecimento insólito que gera vida no país das maravilhas. É no encontro com o diferente por meio do insólito que as camadas de sentidos se abrem. A essa relação de aliança entre reinos Deleuze e Guattari chama devir (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 19).

Os encontros de Alice com os habitantes do país das maravilhas são os encontros da vida, lembram o leitor o tempo todo que a vida acontece sem pedir passagem. Alice, ao se apropriar deste ímpeto potente do inesperado, passa a aproveitar mais a sua experiência sem travar o diferente em suas concepções rígidas que são, na realidade, herdadas e reproduzidas pelo sistema externo. Esses acontecimentos inesperados não se explicam apenas na lógica de uma mente matemática, mas no enfrentamento dessa rigidez de pensamento ocidental de modo quase paradoxal. Nisso o insólito ficcional surpreende personagem e leitor apresentando, na configuração do país e no encontro com o outro, novas possibilidades de sentidos.

Essa multiplicidade que constrói o país das maravilhas não permite capturas duradouras, pois há sempre uma nova conexão surgindo quando tentamos enfeixá-la em um ou outro molde de leitura. É um mecanismo vivo e inusitado como seus personagens, pois a aventura de Alice se faz no encontro como outro.

O Gato que ri e que questiona Alice e o leitor sobre os caminhos que percorrem, a Lagarta que filosofa e desafia a identidade rígida da personagem, o Chapeleiro e os personagens do chá que enredam o tempo e a lógica, o Coelho Branco insistente e veloz como todos as obsessões, a Rainha de Copas que prolifera ordens e manda cortar cabeças, ditadora, mas acaba sendo ridicularizada. Cada um traz um universo de sentidos que é potencializado pelo insólito ficcional na figura de animais falantes, de espaços elásticos, de lógicas diversas e questionamentos de convenções.

Não há uma lógica comum a todos, há um não-senso comum aos habitantes do país das maravilhas e, desta forma, as situações e as conversas tomam rumos sempre inusitados para a protagonista, porém, rumos que ela consegue trilhar. Por vezes a lógica é até inversa, como no capítulo O leão e o unicórnio no qual Alice precisa partir um bolo e, após muitas tentativas — pois sempre que corta as fatias se juntam novamente —, o Unicórnio informa: “Primeiro sirva-o e depois corte-o.”

Assim como toda grande obra literária, Alice também tem espaço para leituras ainda mais afetuosas que são potencializadas pelo insólito ficcional. Alice, criança menina, adentra ao país das maravilhas por meio de um processo sofrido que envolve, inclusive, lágrimas. Ela chora tanto que o choro se transforma em uma lagoa e quando ela está no salão lutando para entrar por uma das portas sem ter o tamanho correto em nenhum caso, constrói os dramas do universo infantil, pois as crianças, muitas vezes, são exigidas a terem comportamentos adultos sem terem as ferramentas necessárias, não se encaixam nem para agirem como crianças, nem como adultas em diversas situações. Ela caiu no abismo quase sem fim atrás de sua curiosidade e, mesmo com todo medo esperado que uma criança tivesse, ela segue sua jornada. A curiosidade vence o medo e o medo é, aos poucos, diluído na sua curiosidade e nas surpresas insólitas. O desconhecido que poderia amedrontar vai, gradativamente, se transformando em surpresa e aprendizado livre e imaginativo no caminho que percorre.

Muito se diz sobre a resolução que o fato de Alice ter sonhado traz à estrutura narrativa, em outras palavras, foi um sonho, logo está tudo explicado, não há nada de insólito entre um polo ou outro da narrativa, apenas na travessia entre um e outro. No entanto, Alice é atravessada pela linha do tédio que impulsiona a insatisfação diante da realidade atual e movimenta uma outra possibilidade dever. No momento em que o tédio a acomete (quando se sentiu “sonolenta e burra”), o Coelho aparece. Até aqui nenhuma menção ao sonho. Quando já está em queda no abismo, o narrador diz: “Sentiu que estava cochilando e tinha começado a sonhar que estava andando de mãos dadas com Dinah […]” (CARROLL, 2002, p. 14). Fora esses dois momentos, há uma menção ao “despertar” logo no final do primeiro livro: “Alice deu um gritinho, um pouco de medo e um pouco de raiva, tentou repeli-los e se viu deitada na ribanceira, a cabeça no colo da irmã […] ‘Acorde, Alice querida!’ disse sua irmã” (CARROLL, 2002, p. 122). Há, no mínimo, três hipóteses: 1) Alice dormiu no início antes da queda, dormiu novamente enquanto caía, e temos um sonho dentro do outro (mise en abyme) (DÄLLENBACH, 1977); 2) se não dormiu no início, despertou ao final e temos, ainda, a hipótese de já estar em um sonho quando sua irmã iniciou a leitura e, portanto, ainda um sonho dentro do outro (mise en abyme), ou 3) ela não dormiu em nenhum momento e o ato de despertar não diz respeito ao sonho, mas a outras possibilidades, outros despertares que acontecem ainda no insólito ficcional.

Alice se apresenta na busca, no absurdo, na certeza e na incerteza, nas contradições, nos paradoxos vistos por seus olhos de criança, ela percorre o País das Maravilhas sem certezas do que encontrará, sem expectativas, o que a permite perceber as minúcias em torno de si, a construir a sua travessia e a refletir sobre tudo que há de não convencional na toca do Coelho Branco.


REFERÊNCIAS

CARROLL, Lewis. Alice’s Adventures in Wonderland. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/pp000004.pdf. Acesso em: 26 out. 2022.
DÄLLENBACH, Lucien. Le récit spéculaire: essai sur la mise en abyme. Paris: Éditions du Seuil, 1977.
DELEUZE, Gilles. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. v. 3. Rio de Janeiro, Ed. 34, 2012.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

BELLON, Ana Carla Vieira. O insólito revolucionário na literatura e na fotografia de Lewis Carroll. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Letras. 2019. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/bitstream/1/5984/1/Ana%20Carla%20Vieira%20Bellon_tese.pdf. Acesso em 26 out. 2022.
BELLON, Ana Carla Vieira. Considerações introdutórias sobre os reflexos do jogo espelhado entre a obra literária e fotográfica de Charles Lutwidge Dodgson. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LITERATURA COMPARADA, 15, Rio de Janeiro. Anais. 2016. Disponível em: http://www.abralic.org.br/anais/arquivos/2016_1491505611.pdf. Acesso em 26 out. 2019.
GAMA-KHALIL, Marisa Martins. A literatura fantástica: gênero ou modo? In: Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários. v. 26. p. 18-31, 2013. Disponível em: http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol26/TR26b.pdf. Acesso em 26 out. 2022.