ALICE ATRAVÉS DO ESPELHO, literatura – Lewis Carroll

Ana Carla Vieira Bellon

A obra Alice Through the Looking-Glass and What Alice Found There foi publicada em contexto diferente de Alice in Wonderland, pois Lewis Carroll resolveu criar uma espécie de sequência do primeiro livro diante do sucesso que ele acabou fazendo. Mais planejado que o anterior e buscando manter as características de linguagem do primeiro, Através do Espelho ganha sua primeira edição no Natal de 1871 e foi um sucesso imediato e aguardado por todos os já leitores de Alice no País das Maravilhas. A potencialização e a radicalização de sentido são absolutamente preservadas nessa sequência, mas com suas peculiaridades que a fazem uma Alice à parte. O que encontramos no Mundo do Espelho em relação ao insólito é muito mais do que a esperada lógica da inversão espelhada.

A reinvenção da linguagem, em relação ao uso não ordinário dos sentidos das palavras, é radical até mesmo em termos literários. Há uma radicalização linguística que constrói um efeito insólito no âmago da linguagem e que por si só torna absolutamente improvável a captura total dos seus efeitos. Mais do que isso, muitos efeitos de sentido resistem às capturas por alguns instantes, pois na medida em que se captura um sentido, novos surgem. Em Através do espelho, assim como no País das maravilhas, também é por meio dos mecanismos do insólito que se constroem as espacialidades e temporalidades.

Essa construção, por sua vez, faz com que o mundo do outro lado do espelho visitado por Alice seja habitado por personagens como a Rainha que precisa correr muito para ficar no mesmo lugar, evidenciando velocidades diversas e inesperadas daquele espaço. Contudo, esses comportamentos que são potencializados pelo modo insólito estão ao final profundamente relacionados à uma lógica, os movimentos dos personagens, assim como é ilustrado no início da obra, estão relacionados com os movimentos das peças de xadrez. O modo, por exemplo, como o cavaleiro branco se movimenta, quase caindo, está relacionado ao movimento em L que a peça faz no jogo de xadrez, há uma curva repentina, uma mudança de direção repentina que o faz cair para frente. No caso da rainha que, muito veloz, que se move, mas volta ao seu lugar de maneira muito rápida, seu comportamento está relacionado à movimentação da peça rainha no tabuleiro que pode ir de uma ponta a outra rapidamente. As características lógicas das peças se refletem no enredo em características insólitas.

Os fios condutores dessa narrativa são o jogo de xadrez e a ideia da inversão física do reflexo do espelho que impactam na lógica dos acontecimentos e na própria construção linguística. No entanto, o insólito é, mais uma vez, sempre fruto de uma nova radicalização, isto é, a própria lógica da inversão é extrapolada como o que ocorre no episódio mesmo da Rainha. Nele, não apenas há a inverção da lógica, mas o acréscimo de uma terceira possibilidade, para ir a algum lugar seria preciso correr duas vezes mais, surpreendendo o leitor que provavelmente esperaria uma simples inversão e, portanto,que ficar parado seria a forma de ir a algum lugar. O insólito é sempre fruto das multiplicidades nesta obra e responsável principalmente pelo seu eterno movimento na história da literatura.

Em Através do espelho há ainda um outro ponto que merece atenção, Alice se depara com uma narrativa heroica e insólita. A menina encontra um livro que apresenta o poema nonsense intitulado Jabberwocky.De difícil tradução, o poema revela de maneira mais intensa o nonsense da linguagem de Carroll que não é o avesso do sentido, ou ideias disparatadas, mas a produção de novos sentidos (DELEUZE, 2015; ÁVILA, 1995) que constitui uma rede quase inesgotável de significações.

Este poema, assim como os personagens do mundo através do espelho, se reflete, juntamente com os personagens do País das Maravilhas, nas diversas releituras e adaptações para o cinema, TV, quadrinhos, música, fotografia, na maioria das vezes de modo misturado, isto é, sem separar as obras. Isso faz com que Alice através do espelho seja menos conhecida do público, pois as adaptações circulam principalmente sob o título de Alice no país das maravilhas. Essas recorrentes releituras ainda na cultura contemporânea aponta, ainda, para uma questão importante em relação à tentativa de capturar e/ou abarcar o sentido total da obra via solução do insólito ficcional. Alice adormece no início desta obra e, ao final, desperta. No entanto, o ato de despertar não resolve a obra, a explicação dos acontecimentos do enredo não está pautada em uma lógica onírica — como dito anteriormente, mas no jogo de xadrez e no avesso do espelho — e seus ecos e reflexos ainda hoje apontam justamente para o fato de que esse sonho ainda não acabou. Ele se mantém vivo na eterna manutenção de sentidos e suas atualizações por todos os leitores que resgatam a obra de tempos em tempos.

Além disso, embora o insólito ficcional construa, por meio da linguagem, o atravessamento de Alice em seu próprio reflexo, há um acontecimento que torna perplexa, mais uma vez, a captura duradoura deste sentido. O que poderia ser interpretado como um tipo de mergulho em si mesma — evidenciado pela expressão utilizada por ela no início do enredo, let’s pretend, que abre o mundo do espelho —, é enfrentado pelos irmãos Tweedles quando revelam a Alice a possibilidade daquele sonho não ser dela, mas do rei que está deitado, dormindo e roncando. Isso é um choque para a personagem que de repente percebe que aquele mundo pode não ser uma criação sua e, mais ainda, que ela pode ser a criação do sonho de alguém. Nesse sentido, a obra de Carroll, por meio do insólito ficcional, abre possibilidade para leituras diversas, desde mais filosóficas — como as que podem ser suscitadas por esta situação — até mais científicas ou mais afetuosas, pois Alice é uma criança menina que se vê em um mundo adulto cuja lógica lhe é totalmente estranha.


REFERÊNCIAS

ÁVILA, Myriam. Rima e solução: a poesia nonsense de Lewis Carroll e Edward Lear. São Paulo: Annablume, 1995.
CARROLL, Lewis. Alice: edição comentada. Introdução e notas, Martin Gardner. Rio de Janeiro: Jorge, 2002.
CARROLL, Lewis. Alice’s adventures in wonderland and through the looking glass. Londres: Penguin, 2009.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2015.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

BELLON, Ana Carla Vieira. O insólito revolucionário na literatura e na fotografia de Lewis Carroll. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Letras. 2019. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/bitstream/1/5984/1/Ana%20Carla%20Vieira%20Bellon_tese.pdf. Acesso em 26 out. 2022.
CARROLL, Lewis. Alice Through the looking-glass and what alice found there. Disponível em: http://birrell.org/andrew/alice/lGlass.pdf. Acesso em 26 out. 2022.
NEGRI, Sergio Ernesto. Lewis Carroll imaginó a su Alicia jugando al ajedrez. Disponível em: https://es.chessbase.com/post/lewis-carroll-y-su-alicia-jugando-al-ajedrez-por-sergionegri-2018. Acesso em 26 out. 2022.